Somente amigos

Essas fotos foram tiradas na tarde de 16/06 por Sueli, minha esposa. Mostram um andarilho que vive pelas ruas de Santa Cruz, conhecido por Trocadinho, e seu cão. Ambos estão dormindo e Trocadinho encostou a cabeça no cão para dormir.
Me surpreende esse tipo de amizade, que normalmente acontece entre o ser humano e um cão, uma amizade sem querer nada um do outro, apenas a amizade. O cachorro não largará dele, e Trocadinho também não largará do cachorro. E o cachorro não está ali apenas porque estaria atrás de comida, mesmo porque o andarilho não tem muita coisa para comer no seu dia, mas reparte o pouco que tem com o cachorro.
Na TV outro dia apareceu caso semelhante, nas ruas da cidade de São Paulo, da amizade de vários catadores de lixo e seus cães, alguns com vários. Mesmo aqui em Santa cruz acontece várias dessas cenas.
É nesse ponto de pobreza extrema, no caso da foto, que o termo amizade se dá em todo o seu pleno sentido, em toda a sua força. Estar com alguém, confiar em alguém, sem pedir nada em troca. No caso do cão é bem assim, pois foi Trocadinho que o aceitou, pois poderia muito bem ter colocado o cão para correr. Mas a necessidade de ter a companhia de algo vivo é muito importante.
E às vezes essa é a única forma de se ter uma companhia, pois nós, que temos bens e nos apegamos a coisas, quando vemos os andarilhos e pessoas mal vestidas fugimos delas. Assim o cão é sua única companhia. Muitas vezes, nesses casos, essas pessoas não tem como confiar nem nos companheiros andarilhos. Pois a mesquinhez humana pode aflorar também nessas pessoas, a raiva, a inveja, a cobiça. Sentimentos esses que não se tem no animal. Por isso a escolha.
Nesta foto me lembrei do caso do índio Galdino, que foi queimado num ponto de ônibus numa noite em Brasília, há alguns anos atrás. Queimado enquanto dormia como esses dois na foto. Queimado por jovens de classe média alta. Com todo o dinheiro que os jovens tinham, seu divertimento foi colocar fogo para ver um ser humano queimando. Esse é o ponto em que chegamos quando temos nosso foco nas posses, no “ter”, no “possuir”. O ser humano pobre é apenas um brinquedo, uma “coisa” a ser explorada.
Ter tudo de material é sempre ter nada. E muitos tentam construir sua felicidade com a posse de coisas. Há dois mil anos já nos é dito isso, mas a sociedade consumista de hoje quer sempre dizer o contrário.
Talvez Trocadinho, com todas as suas mazelas e problemas, sabe muito mais disso do que muitos.
Para pensar, deixo o texto Deficiências de Mário Quintana.

Deficiências – Mário Quintana

Louco é quem não procura ser feliz com o que possui.
Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria. E só têm olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.
Surdo é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.
Mudo é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.
Paralítico é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.
Diabético é quem não consegue ser doce.
Anão é quem não sabe deixar o amor crescer.
E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois Miseráveis são todos que não conseguem falar com Deus.
A amizade é um amor que nunca morre.
(Extraído do dicionário particular de Mário Quintana)